"Arte e ciência" in
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O COMPUTADOR COMO INSTRUMENTO DE ANTI- ARTE
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Valdemar W. Setzer
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Departamento de Ciência da Computação, Instituto de Matemática e Estatística da USP
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"Em primeiro lugar, devemos colocar que vamos nos ater exclusivamente às criações humanas. Essa ressalva se impõe pois muitos pensadores consideraram a natureza como um artista. Platão faz essa distinção em "O Sofista":
"Vou supor que coisas que são feitas pela natureza são obras de arte divina, e coisas que são feitas pelo ser humano são obras de arte humana."
De fato, gostamos de afirmar "a natureza é um artista, e não um cientista" para explicar por que pessoas preferem morar em uma rua arborizada. Cada árvore pode ser encarada como uma obra de arte produzida pela natureza, provocando em nós um senso estético ausente de uma obra científica. No entanto, as obras de arte da natureza carecem de individualidade. Todas as plantas de uma mesma espécie, em uma mesma região geográfica, terão forma semelhante (se bem que nunca idêntica). Todas as belíssimas teias feitas por uma mesma espécie de aranha seguem os mesmos padrões, determinados pelo rígido "programa" seguido pelo animal.
Talvez o corpo humano seja a única obra de arte da natureza com individualidade não decorrente unicamente de determinadas combinações genéticas e influências do meio ambiente, como se vê por exemplo pela expressão fisionômica; isso pode levar à conjetura de que o ser humano não é um ser puramente natural, como podem ser classificados os minerais, os vegetais e os animais. De fato, quando os humanos primordiais fizeram suas pinturas rupestres, já mostraram que não eram totalmente naturais - talvez nunca o tenham sido! Quem sabe daí advém a dificuldade em se determinar a origem natural do ser humano... Contrariamente à arte da natureza, cada obra de arte humana deve ter uma característica individual. Certamente nossa casa é diferente de todas as outras do mundo, pois eu e minha esposa encomendamos ao nosso arquiteto, o saudoso Bernardo Blanco, um projeto que não seguisse o padrão de caixa retangular de tijolos e concreto, como se vê comumente, e sua criação artística foi realmente individual.
Além de necessariamente expressar um aspecto individual do seu criador, a obra de arte deve ter uma característica fundamental, que a distingue da obra científica. Seguindo Goethe (...), formulamos a seguinte caracterização:
A ciência é a idéia tornada conceito; a arte é a idéia tornada objeto. Isto é, ambas têm a mesma origem, mas uma é expressa por meio de abstrações, e é captada pelo nosso pensamento, e a outra é concretizada em algo que pode ser captado pelos nossos sentidos. Isso é claro nas artes mais "físicas" como, pela ordem estabelecida por R.Steiner (...), a arquitetura, escultura e vestuário (nos povos em que este ainda é uma expressão de um estado de ânimo). No entanto, também pode ser reconhecido em artes mais espirituais, como música (os sons são elementos físicos) e a poesia (também depende de se escutar - mesmo que interiormente - os sons das palavras).
Obviamente, estamos aqui fazendo uma distinção fundamental entre ciência e técnica ("technology"). Uma máquina ou um instrumento é algo concreto, mas a ciência que se encontra por detrás deles é um edifício puramente conceitual.
Assim, a arte e a ciência complementam-se. Segundo Steiner, "O dito de Goethe que arte é uma espécie de conhecimento é verdadeiro, pois todas as outras formas de conhecimento, tomadas em conjunto, não constituem um conhecimento completo do mundo. Arte - criatividade - deve ser adicionada ao que é conhecido abstratamente se quisermos atingir um conhecimento universal" (...).
É uma grande tragédia da humanidade estar-se dando importância quase que apenas à ciência e ao pensamento científico. Basta ver-se que tipo de educação as crianças e jovens estão recebendo no mundo todo, para ver-se que a educação artística é ínfima - se existente - em comparação com a educação científica. Educa-se para o pensar abstrato formal e não um pensar "intuitivo" como o que se passa na atividade artística. Com isso estamos condenando a humanidade a ter uma visão unilateral indevida do mundo, uma visão desumana, pois esse é o tipo de ciência feito hoje em dia. Pode-se observar como a ciência tem se orientado em grande parte para a produção técnica, com a finalidade de aumentar o poder ou o capital, e não para o conhecimento. Todos os desastres provocados pela técnica talvez possam ser remontados à desumanidade da atividade científica de hoje, que encara os seres vivos como meros minerais mais complexos, usando com aqueles um método que deveria ter validade apenas no âmbito do inanimado - e mesmo aí tem resultados dúbios do ponto de vista de conhecimento. Possivelmente, os atuais desastres econômicos no mundo todo podem ser remontados ao tratamento das questões sociais com pensamentos científicos, sem o emprego simultâneo de um "pensamento artístico" que, cremos, é essencial para se lidar com quaisquer dessas questões, como veremos (...).
A nossa frase no espírito de Goethe ainda revela um ponto fundamental: o objeto de uma "verdadeira" arte deveria expressar uma idéia, isto é, uma realidade espiritual, e não ser meramente uma combinação casual de elementos aleatórios. Talvez seja a essa realidade espiritual que Kandinsky quis referir-se na terceira parte do que ele chamou de "Necessidade Interior" que caracteriza a criação artística, produzindo uma arte "verdadeiramente pura [que serve ao] divino." Segundo ele, "Cada artista, como servidor da Arte, deve exprimir, em geral, o que é próprio da arte (elemento de arte puro e eterno que se encontra em todos os seres humanos, em todos os povos e em todos os tempos, ..., e não obedece, enquanto elemento essencial da arte, a nenhuma lei do espaço nem do tempo.)" e, mais adiante, "a preponderância do terceiro elemento numa obra é que constitui o indicador da grandeza dessa obra e da grandeza do artista." (...)
É óbvio que a pintura de uma paisagem, um "portrait" ou uma natureza morta expressam uma realidade, mesmo que seja sob a forma de nossas sensações como no impressionismo. Por outro lado, cremos que o expressionismo na pintura tinha a intenção de exprimir algo interior existente mas invisível, como por exemplo um estado emocional. Talvez a música de J.S.Bach seja tão especial pelo fato de ser a que mais se aproxima da sensação daquela realidade arquetípica não-física que os gregos chamavam "a música das esferas." Daí para diante, a música torna-se cada vez mais uma expressão de uma criação individual, "terrena." Não estamos esquecendo a capacidade de criação abstrata e experimental-científica de Bach - veja-se sua "têmpera" das escalas. Mas não podemos considerar que sua música tenha sido toda calculada - como alguns gostariam que tivesse sido -, pois ele não teria tido tempo para isso. Lembremos que ele próprio afirmou ser sua música "inspirada."
Uma das caracterizações fundamentais das obras artísticas em contraposição às obras técnicas é o fato destas seguirem regras formalmente definidas. Obviamente existem regras na arte - afinal, a confecção de qualquer objeto deve seguir regras impostas pela natureza física do material. No entanto, essas regras não devem ser formais ou "definidas." Kant escreveu na "Crítica ao Julgamento," parte I (Crítica da Razão Estética):
"Qualquer arte pressupõe regras que são estabelecidas como as fundações que inicialmente permitem um produto ser representado como possível."
E, mais adiante,
"Belas Artes somente são possíveis como produtos de um gênio, ..., um talento que produz aquilo ao qual não se pode dar regras definidas."
Essa não-definição total das regras seguidas na confecção de um objeto de arte é que permite que a intuição (essa capacidade interior que escapa a uma caracterização científica... pensamentos vindos do nada?) manifeste-se sem regras que podem ser conceitualizadas, formalizadas. A intuição deve estar presente tanto na criação científica como na artística, no entanto numa ela manifesta-se através de regras formais, e na outra deve haver algum elemento informal, não passível de descrição exata, proveniente da interação física entre o artista e o material. Recordemos que este, no caso da música e da poesia, é o som. No caso de um romance, é a imagem interior ("Vorstellung") que o escritor faz o leitor criar, imagem esta baseada nas experiências sensoriais, emocionais, morais, etc. do último. Note-se ainda o uso por Kant da palavra "gênio," que ele atribuiu à "natureza no indivíduo," o que podemos interpretar como a manifestação da individualidade do artista. Em Platão ("Ion") encontramos também a menção do gênio, pois ele descreve a arte como produto da inspiração divina do gênio captado pelo ser humano. Mas, nesse caso, o "gênio" espiritual não se encontrava dentro do indivíduo e nem era "natural" como no materialismo de Kant, mas inspirava-o de "fora." Lembremos que Homero sempre invocava a divindade para inspirá-lo a escrever a obra: "Cante, ó deusa, a ira de Aquiles filho de Peleus, que trouxe incontáveis desgraças sobre os Aqueus..." e "Conte- me, ó Musa, sobre aquele genial herói que viajou longe e amplamente depois que saqueou a famosa cidade de Tróia." Isto é, o antigo grego não tinha a percepção interior que qualquer pessoa tem hoje em dia, de produzir seus próprios pensamentos. Steiner escreveu de Homero: "A poesia épica aponta para a divindade superior, aquela considerada feminina por que transmite forças frutificantes." Logo em seguida, falando sobre a evolução do teatro desde Ésquilo até Aristófanes: "somente gradualmente, na Grécia, à medida que a conexão humana com o mundo espiritual caía no esquecimento, a ação divina representada no palco tornou-se puramente humana" (...).
A propósito de regras, uma outra característica que encontramos nas artes é que as regras que elas seguem são razoavelmente rígidas e, em boa parte, pré-existentes no material do objeto e nos eventuais instrumentos empregados, ao passo que na ciência elas são determinadas em grande parte pelo seu criador. De fato, uma teoria matemática é um campo totalmente aberto, desde os axiomas até a extensão dos teoremas; uma teoria física pode ter um grande espaço de manobra, pois é um modelo abstrato, podendo-se imaginar elementos sem limite clássico, isto é, que não correspondem à nossa experiência sensorial, como o spin do elétron ou as ondas de probabilidade da Mecânica Quântica. Mesmo experiências físicas podem ter um grande espaço de manobra - parece-nos que os aceleradores de partículas mudam as condições da matéria, fabricando-se manifestações (por exemplo, partículas) que talvez não existem em estados normais. Compare-se com o espaço de manobra de um pianista, cujo instrumento de percussão é extremamente limitado na produção de cada som. No entanto, que obras de arte e que sensibilidade podem ser transmitidas por um mestre no "touché," como acabamos de presenciar na audição de Pogorelich! É justamente a manifestação de liberdade em um espaço limitado que revela o grande artista. A esse respeito, vale a pena meditar sobre a poesia de Goethe que transcrevemos e (mal-) traduzimos no apêndice.
O elemento informal e intuitivo na arte leva-nos a dizer que na criação artística deve haver um elemento inconsciente, que nunca poderá ser conceituado totalmente. Já a criação científica deve poder ser expressa por meio de pensamentos claros, universais e não-temporais - isto é, independentes da particular interpretação do observador, talvez até certo ponto (dependendo da área) formais, matemáticos. Imagine-se uma descrição do Altar de Isenheim através dos seus pixels e seus comprimentos de onda - ele perderia totalmente o senso estético e não produziria mais a reação interior provocada no observador pelas cores, formas e motivos, isto é, não teria o efeito terapêutico para o qual foi criado por Grünewald. Insistimos que também na observação deve haver um elemento individual, o que não deve ocorrer no caso da ciência.
O elemento emocional foi realçado por Freud, quando afirmou em sua "Introdução à Psicanálise," Aula 23, e no ensaio "Além do Princípio do Prazer," que a arte é emoção ou expressão subconsciente e não imitação ou comunicação (dentro de seu típico raciocínio unilateral da teoria da sublimação da emoção e do desejo através da arte). Comparando-se com a arte como comunicação de uma realidade espiritual, de Kandinsky, vê-se bem o contraste entre materialismo e espiritualismo; neste pode haver algo superior a ser comunicado.
É interessante insistir que a idéia expressa em um objeto de arte é objetiva, mas a necessária sensação e emoção que ela desperta é subjetiva. Por exemplo, ouça-se uma terça maior seguida de uma menor, ou uma sétima seguida de uma oitava. Estamos seguros que qualquer pessoa terá sensações diferentes em cada caso, que ficam claras pelo contraste entre cada intervalo e o seguinte. Mas provavelmente quase todas as pessoas dirão que a terça menor é "mais triste" e a sétima produz uma tensão aliviada pela oitava. Cada um sente essas emoções diferentemente, mas há claramente algo universal por detrás delas, como as sensações que temos do amarelo limão (alegre, radiante, abrindo-se) e do azul da Prússia (triste, introspectivo, fechando-se). A esse respeito diz Kandinsky (...): "O elemento de arte puro e eterno ... é o elemento objetivo que se torna compreensível com a ajuda do subjetivo."
Consideramos também uma distinção essencial entre obra artística e científica o fato da primeira dever sempre ter contextos temporais e espaciais ligados à sua criação. Como contraste, uma teoria científica não depende do tempo, desde que seja consistente e corresponda às observações, se for o caso. Um exemplo simples é o do conceito de uma circunferência, como por exemplo o lugar geométrico dos pontos eqüidistantes de um ponto. Essa definição formal não dependeu das condições de seu descobridor. Ela é impessoal e eterna. O fato de podermos captá-la com nosso pensamento levou Aristóteles a conjeturar, por um raciocínio puramente lógico, precursor de nossa maneira de pensar hodierna, e que não poderia ter ocorrido em Platão, pois este tinha sido um iniciado nos Mistérios (veja-se a fantástica "A Escola de Atenas," de Rafael para uma representação da diferença entre os dois), que temos dentro de nós também algo de eterno.
A dependência espaço-temporal da criação artística aliada ao elemento de expressão individual semiconsciente do artista faz com que haja sempre um elemento de imprevisibilidade na criação. O artista deve observar sua obra durante o processo de criação, para influir no mesmo e chegar a algo que não podia inicialmente prever. Isso pode ser um processo puramente interior, como no caso de um compositor que não precisa ouvir os sons de sua obra; no entanto, a sensação auditiva ao ouvi-la tocada nunca é a mesma que a que pode imaginar interiormente. Poder-se-ia argumentar que a pesquisa científica também tem elementos de imprevisibilidade. Isso pode ocorrer até na matemática: um teorema pode ser descoberto, e o seu autor ou outros ainda não saberem como se poderá prová-lo (um exemplo recente foi a prova do último teorema de Fermat, formulado no século XVII). Uma grande diferença reside no fato do resultado ser, como já dissemos, de um lado um conceito, de outro um objeto. Além disso, uma vez estabelecido um conceito científico, toda vez que se refizer a experiência ou a teoria correta o resultado será o mesmo (dentro das eventuais aproximações experimentais); no caso da criação artística, o objeto de arte deverá sempre mudar, pois a sua simples presença deve influenciar o criador, que terá outras inspirações na hora de repetir a criação (lembremos da frase de Freud de que simples imitação não é arte). Damos e esse fator o nome de "dinamismo da criação artística."
Resumindo, a arte em nossa opinião deve ser expressa através de objetos físicos (eventualmente sonoros) ou da imaginação desses objetos (como no caso de um romance); deve exprimir uma idéia, que é uma realidade não-física; não deve poder ser totalmente criada ou descrita por meio de elementos puramente formais, contendo sempre um elemento subconsciente; deve ter um caráter individual ligado ao seu criador e ao observador; deve permitir uma certa liberdade dentro de regras informais impostas pelo material e pela ação do artista; deve envolver emoções do artista e do observador; deve ter contextos temporais e espaciais ligados à sua criação, que deve ser dinâmica, e o processo de criação deve ter um elemento de imprevisibilidade.
Antes de discorrermos sobre nossa opinião em relação ao uso de computadores na arte, será ainda necessário examinarmos a maneira como eles podem ser usados na atividade artística."
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(formatação nossa, incluindo a não inclusão das notas e referências originais)
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